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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A família é um teatro

Sou leigo em Psicologia e em todas as ciências da psique. Mas desconfio que a maioria dos nossos sofrimentos tem origem na infância. Por isso, acredito que a família tem papel decisivo na vida do sujeito, para o bem ou para o mal. Vista como instituição sagrada, e portanto inquestionável, ela é muitas vezes responsável por traumas irreversíveis, que podem se manifestar em forma de introspecção, agressividade, baixo autoestima, depressão...

Considerado “inimigo da família”, o psiquiatra José Ângelo Gaiarsa, falecido em 2010, dizia que o problema está no fato de não haver “escola de formação de pais”, tornando a missão de educar os filhos uma das tarefas mais difíceis do mundo. Despreparados, esses pais justificam todo tipo de maus-tratos como forma de “educar” os filhos.

Maus-tratos que não devem ser entendidos apenas como sinônimo de pancada. Ao contrário, para os filhos de criação muito rígida não há nada mais temeroso que o olhar duro, ou “castigo psicológico”, que às vezes causam mais estragos que a tão criticada palmada.

Para a maioria dos pais – dizia Gaiarsa – educar os filhos é repetir tudo o que aprendeu dos próprios pais — ainda que isso implique numa educação retrógrada e conservadora. Não por acaso, as neuroses nascem quase sempre das relações familiares.

O velho psiquiatra não poupava nem mesmo a figura (sagrada) da mãe. Para ele, a crença de pensar que mãe é para sempre constitui um “pecado” imperdoável. “Em todas as espécies, as mães cuidam dos filhos enquanto eles precisam de cuidados. No caso dos homens, não. Ninguém está preparado para esta separação. Ao contrário, é cada vez mais comum encontrar marmanjos vivendo dentro da casa da mãe santa e eterna, com tudo à mão. E, o que é pior, ela adora isso”.

Mas se é assim, por que irmãos, criados em um mesmo ambiente, costumam ser tão diferentes entre si? Ora, eles têm individualidades que os tornam diferentes. E se são diferentes, o amor dos pais por cada um dos filhos também é diferente – o que desfaz o tabu segundo o qual amamos todos os filhos da mesma forma. Esse “amor diferente” faz com que os pais atribuam diferentes papéis aos filhos.

Imaginemos então que a família é um teatro – o lar é o palco, os filhos são os atores e os pais os diretores. A cada um dos filhos-atores é atribuído pelos pais-diretores determinado papel, que de tanto ser repetido acaba sendo assimilado, (con)fundindo ator e personagem. Isso explica porque muitas famílias têm o filho-problema, o estudioso, o trabalhador, o preguiçoso...

Minha família não é diferente. A cada um de nós foi dado um papel por nossos pais, o qual ensaiamos na infância e ainda hoje encenamos no palco-vida. Somos sete irmãos, dos quais a maioria tem dificuldades, por exemplo, em dar a resposta certa, na hora exata. Dito de outra forma, “engolimos sapo”, "levamos desaforo pra casa”.

Foi no consultório da psicóloga S.M. que entendi isso. Ao revisitar minha infância me vi – pequeno e franzino como um sibite baleado – ouvindo, cabisbaixo, pais, tios, avós, e qualquer outro adulto.

- Responder os mais velhos é um pecado mortal – me “ensinavam”.



domingo, 16 de novembro de 2014

Muito doido

Minha infância foi cercada de loucos. Gente “abilolada” das ideias, desmiliolada: andarilhos, beberrões, mendigos, cachaceiros... Felizmente, eram todos pacíficos, diferentes dos que enlouquecem pelo uso de crack e outras porcarias atuais.


Seus nomes – cuja origem e significados nunca apurei – diziam muito de suas personalidades. O Derreta pedia a todo mundo dinheiro para beber cachaça; até aos crentes, que passavam por ele com suas bíblias debaixo do braço. Mas neste caso nunca confessava como seria aplicado o vil metal, e para convencer o freguês ainda citava o Provérbio:

- O que vê com bons olhos será abençoado, porque dá do seu pão ao pobre.


Depois de investir o dinheiro da mendicância, jogado nas calçadas, conversava sozinho e fazia gestos obscenos para as mocinhas que passavam. Sua memória, porém, era prodigiosa: mesmo no auge da bebedeira dava conta da vida de todo mundo da cidade.


Um dia minha tia Dedé – que diziam ser meio assanhada para os padrões da época e do lugar – perguntou-lhe:


- Você não tem vergonha de viver pedindo?


- Uns pedem, outros dão – retrucou o doido.


Outro zureta que permanecerá vivo para sempre em minha memória é o Café Paterrão. Magro, alto, barbudo e com grandes olheiras, ele era obcecado por café. Diziam inclusive que enlouquecera pelo excesso dessa bebida, que literalmente lhe tirava o sono.


Um dia bateu à nossa porta e pediu-nos, além do café, um cigarro. Não estando nossos pais, enrolamos um papel (sem fumo) e lhe demos. Ao acendê-lo, o fogo chamuscou sua barba. Praguejou as gerações passadas e futuras dos Gonçalves.


- Moleques, seus filhos do cão, vão tocar fogo na p. que os pariu. Vou contar tudo pro pai de vocês.


Já o Gringo não amaldiçoava ninguém. Tinha esse apelido porque vivera em Londres, antes de endoidecer. Diziam que ficou amalucado porque sua mulher o traíra, em plena cama do casal, enquanto ele dava aulas de inglês numa cidade vizinha.


Desde então entregou-se à bebida. E quando se embriagava formava-se um círculo de curiosos em torno dele para ouvi-lo falar um idioma fictício, produzido pelo álcool, que acreditávamos ser o autêntico inglês britânico.


Nem um doido, porém, me impressionou tanto como a Bina – uma mulher franzina, sem dentes e descabelada, com um saco nas costas – que permanece viva em meus pesadelos, mais de 30 anos depois.


Diferente dos outros malucos – andarilhos – ela tinha uma casa, que dividia com uma quantidade inconcebível de cachorros, ou melhor, de ferras que avançavam nos incautos que chegassem perto demais de sua dona.


Para alimentá-los, a tresloucada pedia ossos nos açougues; levados para sua casa-canil, eram roídos dia após dia pelos cães, exalando odor de morte e aparência de labirinto de minotauro.


Um dia, curioso e com medo, perguntei ao meu pai sobre os ossos mal cheirosos:


- Pai, que ossos são aqueles, na casa da Bina?


- São de crianças desobedientes, que ela carrega no saco, mata e dá aos cachorros – respondeu.


Ainda hoje sou um filho obediente.


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Carta a Loiane

Loiane, você começou a existir para mim no exato momento em que desapareceu deste mundo. Eu estava lá, no fatídico dia 13 de junho de 2012, quando você foi atropelada e morta por uma BMW Z4, na avenida LO-03, em Palmas.

Quando ali cheguei, a vida se esvaía do seu corpo, com a certeza de que não vale a pena continuar existindo em um mundo no qual “os carros passam furiosamente pelas ruas e se cruzam velozes pelas praças; parecendo tochas, e correndo como relâmpago”, como previu o profeta Naum.

Um homem (provavelmente seu pai) se desfazia em lágrimas sobre seu corpo, já sem vida; um rapaz (vim a saber que é seu irmão) chutava o veículo – seu algoz – enquanto policiais tentavam contê-lo. O lamento dos dois nunca me saiu da memória...

- Quem é ela – perguntei a uma senhora presente no local do “acidente”. 

- Se chamava Loiane Morena Vieira. Estudante de enfermagem. Tinha 22 anos, e era filha de uma grande amiga minha – respondeu objetivamente a mulher, que em seguida desapareceu entre os curiosos.

Te imaginei formada, toda vestida de branco, atendendo pacientes em um hospital, distribuindo sorrisos, brincando com crianças, vítimas de câncer, com seus tradicionais lenços na cabeça; conversando com idosos, largados nos hospitais por seus familiares, enquanto colhia-lhes sangue para exames.

Mas você desapareceu, foi extinta, abolida, anulada, apagada, eliminada, suprimida – deixou de ser um ser para tornar-se número da estatística policial. Você se tornou uma, das 43 mil pessoas que perdem a vida todos os anos todos os anos em acidentes de trânsito no Brasil, sem falar na dor das famílias que perdem parentes, e nas vítimas que ficam com sequelas.

Você não fará curativos, não ajudará a restaurar a saúde daqueles que sofrem nos nossos hospitais públicos, onde provavelmente trabalharia. Eu soube, de alguma forma, que a “ciência do cuidar” ficou mais pobre sem você, que seu conhecimento científico seria amplo e constantemente aprimorado. 

Contudo, nunca iria sobrepor-se ao cuidado com aqueles que sofrem. Você seria, enfim, diferente de muitos que vestem branco, se dizem enfermeiros, mas são desumanizados após acostumarem-se com o sofrimento e a morte, comuns na maioria dos nossos hospitais.

Após sua partida, Loiane, tentaram te culpar por sua própria morte. Disseram que você estava lendo uma mensagem no celular e não prestou atenção antes de atravessar a avenida, fora da faixa de pedestre.

Mas não fique triste. Culpar a vítima é a estratégia – infame mas eficaz – mais usada pelos “bons” advogados: as mulheres são estupradas por usarem roupas curtas; a escola reprova porque o aluno é burro; o povo é pobre porque não gosta de trabalhar e os pedestres morrem porque não respeitam as leis de trânsito.

Portanto, Loiane, as coisas por aqui não mudaram muito, desde que você partiu.