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terça-feira, 22 de abril de 2014

O som da morte!

Descobri que estou ficando velho no momento em que comecei a me incomodar com qualquer barulho: TV, som automotivo, buzina de automóvel, grito de crianças e até o som do apito do vendedor de algodão doce.

Minha mulher me adverte que estou ficando “velho e ranzinza”, sempre que me ouve excomungar os responsáveis pelos ruídos insuportáveis. Você é quem vai ficar um velho insuportável, me avisa.

Mas esse tipo de estresse não é privilégio exclusivo deste quase ancião. Segundo a Organização Mundial de Saúde, depois da água e do ar, a poluição sonora (constituída de qualquer ruído capaz de produzir incômodo) é o problema ambiental que afeta o maior número de pessoas em todo o mundo.

Desses ruídos – segundo especialistas – podem resultar problemas como distúrbios cardiovasculares e gastrointestinais, dor de cabeça, cansaço, irritabilidade, estresse, distúrbios do sono, diminuição da atenção/concentração, aumento do risco de acidentes de trabalho (pela falta de concentração), redução da potência sexual, distúrbios da comunicação. Eu que o diga!

No meu caso, porém, o ruído que mais me angustia é o das sirenes de viaturas da polícia, bombeiros e ambulâncias. Aliás, nunca consegui diferenciá-los. Levei anos, e muitas sessões de terapia, para descobrir a razão.

Pense, concentre-se no som de sirene – me pede a psicóloga S.M. ­– e me conte tudo o que for “vendo”. Deitado no divã tento imaginar, com dificuldade, o ruído insuportável...

Estou em Anápolis, no ano de 1997, ouço som de sirene. Do banco de passageiros de uma ambulância vejo dois jovens, um loiro e um negro, jalecos longos e brancos, tentam ressuscitar... minha mãe, derrame!

Agora já estamos num hospital, maca, gritos, doentes, médico, pulso, coração: ela faleceu, podem levá-la de volta... O som da sirene nunca mais parou de tocar!

terça-feira, 15 de abril de 2014

Escrever é cortar palavras




Ruffato diz não ter vocação para blogueiro
O escritor Luiz Ruffato conta que descobriu, frustrado, não ter vocação para blogueiro. Em viagem a Lisboa para atualizar um blog e escrever um livro, como parte do projeto Amores Expressos, ele disse que não via nada de interessante que pudesse ser comunicado a outras pessoas.

“Lisboa tem sol, mas não calor ainda... tem luz e cheiro de sardinha nas ruas, encontro com os amigos, converso com eles sobre projetos, mas nada que gostasse de dividir... sinto que em minha vida de viajante nada ocorre de interessante...”

Descubro que também sou péssimo blogueiro. Não tenho sobre o que escrever; fico horas parado em frente ao computador (em plena madrugada) sonhando acordado com a palavra certa, o parágrafo perfeito, o texto definitivo. E nada!

Li em algum lugar uma entrevista do escritor Carlos Heitor Cony na qual ele diz que para escrever é preciso estar cheio – no sentido de pleno. Estou vazio! Para me “encher” pego um livro da minha pequena biblioteca, se é que se pode chamar assim... São Bernardo, Graciliano Ramos. Que inveja do velho Graça. Esse sim tinha texto conciso... Era um cortador de palavras. Fecho o livro.

Para Armando Nogueira, frase deve ser atribuída a Ruskin
“Escrever é a arte de cortar palavras”. De quem seria esta frase? Sempre a atribuí a Carlos Drummond de Andrade. Mas o mestre Armando Nogueira dá conta de que o autor dessa preciosa máxima não é o grande poeta mineiro. Confesso que fiquei decepcionado com a descoberta.

Continuo minha busca pelo autor de ensinamento tão sábio. Saudade da Britânica, que dava um banho nesse Google. A velha enciclopédia não será mais publicada em versão impressa – após 244 anos desde que seu primeiro exemplar foi publicado.

Melhor esquecer o buscador e a enciclopédia e voltar ao velho e bom Armando Nogueira. Ele chegou à conclusão de que a frase deve ser atribuída ao escritor inglês John Ruskin. “Se não o disse, com todas as letras, certamente foi Ruskin quem melhor ilustrou o adágio, num conto antológico”.

A história é a seguinte:

"O homem chega à feira e lá encontra seu compadre, arrumando os peixes num imenso tabuleiro de madeira. Cumprimentam- se. O feirante está contente com o sucesso do seu modesto comércio. Entrou no negócio há poucos meses e já pôde até comprar um quadro-negro pra badalar seu produto.

Atrás do balcão, num quadro-negro, está a mensagem, escrita a giz, em letras caprichadas: HOJE VENDO PEIXE FRESCO. Pergunta, então, ao amigo e compadre:

- Você acrescentaria mais alguma coisa?

O compadre releu o anúncio. Discreto, elogiou a caligrafia. Como o outro insistisse, resolveu questionar. Perguntou ao feirante :

- Você já notou que todo o dia é sempre hoje? - E acrescentou: - Acho dispensável. Esta palavra está sobrando...

O feirante aceitou a ponderação: apagou o advérbio. O anúncio ficou mais enxuto. VENDO PEIXE FRESCO.

- Se o amigo me permite - tornou o visitante -, gostaria de saber se aqui nessa feira existe alguém dando peixe de graça. Que eu saiba, estamos numa feira. E feira é sinônimo de venda. Acho desnecessário o verbo. Se a banca fosse minha, sinceramente, eu apagaria o verbo.

O anúncio encurtou mais ainda: PEIXE FRESCO.

- Me diga uma coisa: Por que apregoar que o peixe é fresco? O que traz o freguês a uma feira, no cais do porto, é a certeza de que todo peixe, aqui, é fresco. Não há no mundo uma feira livre que venda peixe congelado...

E lá se foi também o adjetivo. Ficou o anúncio, reduzido a uma singela palavra: PEIXE.

Mas, por pouco tempo. O compadre pondera que não deixa de ser menosprezo à inteligência da clientela anunciar, em letras garrafais, que o produto aí exposto é peixe. Afinal, está na cara. Até mesmo um cego percebe, pelo cheiro, que o assunto, aqui, é pescado...

O substantivo foi apagado. O anúncio sumiu. O quadro-negro também. O feirante vendeu tudo. Não sobrou nem a sardinha do gato. E ainda aprendeu uma preciosa lição: escrever é cortar palavras."

P.S.

Ao contrário do que escreveu Luiz Ruffato, sua viagem, citada no início do texto, resultou no ótimo livro Estive em Lisboa e lembrei de você.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Família é pra essas coisas

Quem escreve quer ser lido. Quem é lido é criticado. E a pior crítica, pra quem escreve, é ser ignorado.

E as melhores críticas são sempre aqueles feitas pela família. Graças a Deus, minha família acompanha meu trabalho, com grande interesse.

Quando eu trabalhava no Jornal do Tocantins fazia mais de dois anos uma pessoa da minha me perguntou:

- Rubens, em que jornal você trabalha mesmo?"

Essa mesma pessoa me perguntou, anos depois:

- Rubens, em que rádio você trabalha, é na Jovem Palmas?

Fazia cinco anos que eu estava na 96 FM.

Na semana passada, todo feliz, mostrei à minha filha caçula (8 anos de idade) um texto que eu havia acabado de postar neste blog.

- Filha, leia e me explique o que você entendeu...

Ao ler a primeira linha:

- Não entendi nada, esse texto tá cheio de erros...

terça-feira, 8 de abril de 2014

Sobre garis e outras invisibilidades

Minha infância e adolescência foram de trabalho duro. Meu pai se levantava ao primeiro galo e nos chamava. Eu e meus dois irmãos. “Vamos, meninos, alguém precisa fazer o trabalho sujo”. Éramos garis.

Mas a palavra ‘gari’ ainda não existia. O eufemismo surgiu bem depois, pelo menos para os moradores da pequena Nova Glória, interior de Goiás. Por isso éramos ‘lixeiros’.

Apenas meu pai recebia – um salário mínimo – pela limpeza da cidade. O lixo era transportado numa carroça que tínhamos, do tempo em que ainda vivíamos na fazenda, de onde meus pais se mudaram para que pudéssemos estudar.

Toneladas de lixo eram transportadas por nossa égua russinha... Éramos apenas ajudantes - peças do mecanismo de exploração na engrenagem do poder público municipal, numa sociedade dita avançada que escondia (e esconde) formas contemporâneas de escravidão. 

Isso foi no início da década de 1980. Eu tinha então sete anos (um irmão de nove e outro de cinco), mas já desconfiávamos de algo que só viria a ser cientificamente demonstrado no Brasil em 2004: os garis são invisíveis.

A “descoberta” foi feita pelo psicólogo e professor Fernando Braga da Costa, que varreu rua por quase dois anos ao lado dos responsáveis pela limpeza da Cidade Universitária, em São Paulo.

A pesquisa participante resultou no ótimo livro Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. “O ofício de gari parece acentuadamente atravessado por um fenômeno de gênese e expressão intersubjetivas: a invisibilidade pública – espécie de desaparecimento psicossocial de um homem no meio de outros homens”, escreveu o pesquisador.

De fato, só sentimos falta dos garis quando eles entram em greve e lixo mal cheiroso que produzimos se acumula em nossas calçadas. Como os mendigos, os garis nos fazem lembrar a nossa própria miséria. Por isso os repelimos, e eles desaparecem.

Assim, perdemos a oportunidade de aprender com eles, como aprendeu Fernando Braga. “Os garis abriram meus olhos. Alguma consciência emergiu. Passei a ver coisas que não via. Passei a ouvir coisas que não ouvia. Passei a sofrer por coisas pelas quais não sofria (...)”.

Sofrimento e humilhação. Estas são as únicas coisas das quais me lembro dos três anos em que trabalhei como gari, apesar de não me envergonhar do que fiz, porque meu pai também fazia, e me orgulho dele...

Numa manhã de sábado, na Avenida Paulista, centro de Nova Glória, em frente a uma máquina de beneficiar arroz, meu pai apanhou o lixo que íamos juntando, alguns metros à frente. Um rapaz alto, branco e antipático jogou lixo na rua pouco depois que meu velho passou limpando.
- O que você acha que nós somos? – Perguntou papai, fazendo um círculo com o indicador.
- Nada. São lixeiros...

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Mulheres, piolhos e outras semelhanças

Relendo as memórias de Gabriel Garcia Márquez (Gabito, para os íntimos) descubro, com alegria, que temos muito em comum – exceto sua escrita, imaginação e memória.

Venho de uma família grande e pobre. Ele também. Fiz quase tudo na infância e adolescência para sobreviver – fui engraxate, gari, garçom, bóia fria, garimpeiro, digitador... O escritor colombiano também teve muitas profissões para ajudar a família ou para comprar gibis, jornais, livros e revistas.

Mas gostaria de falar de apenas dois aspectos, da minha vida e da dele, que acredito terem muita semelhança: a vergonha dos piolhos e o amor às mulheres.

Na zona rural do município de Ceres, onde nasci, no interior de Goiás, não tinha muito que fazer, a não ser o trabalho duro na roça. Ali, esperava-se a morte com ansiedade. Não a própria morte, mas a de algum vizinho, cujo velório reunia uma multidão saída sabe-se lá de onde. Como não tinham com quem deixar os filhos, meus pais levavam uma fileira de meninos e meninas pelo beco estreito feito pelo gado no meio do pasto.

Um dia, num desses velórios, meu pai me contou que quando uma pessoa morre os piolhos descem para o rosto do defunto à procura de sangue, que para de circular, ficando com a consistência de uma goiabada. E que quem pega piolho de defunto nunca mais se livra da praga. Assustado, pedi à minha mãe que, quando eu morresse, catasse de mim todos os piolhos, ou rapasse minha cabeça para que meus amigos não vissem meu rosto infestado dos insetos achatados.


“Até os cinco anos, a morte havia sido, para mim, um fim natural que acontece aos outros (...). Até que meio de esguelha reparei, num velório, que os piolhos estavam escapando dos cabelos do morto e caminhavam sem rumo pelo travesseiro. O que me inquietou desde então não foi o medo da morte e sim a vergonha de que também de mim escapassem os piolhos diante dos que estivessem enlutados em meu velório”, escreveu o Nobel de literatura.

Já a convivência com as mulheres – ao contrário dos piolhos – é um privilégio que Garcia Márquez e eu sempre tivemos. “Acho que, na verdade, eu devo a essência da minha maneira de ser às mulheres da família e às muitas das empregadas que pastorearam a minha infância. Eram de um gênio forte e coração terno, e me tratavam com a mesma naturalidade do paraíso terrenal”. Como ele, eu tenho mais irmãs que irmãos, mais primas que primos, mais amigas que amigos... Talvez por isso, sempre me senti melhor entre elas do que entre os homens.

P.S.

Vem também da minha infância o medo que tenho de dor de dente. Surgiu num velório, quando perguntei:
- Pai, por que essa velha (a morta) tá com esse pano amarrado do queixo pra cabeça?
- Ela morreu de dor de dente...