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quinta-feira, 3 de abril de 2014

Mulheres, piolhos e outras semelhanças

Relendo as memórias de Gabriel Garcia Márquez (Gabito, para os íntimos) descubro, com alegria, que temos muito em comum – exceto sua escrita, imaginação e memória.

Venho de uma família grande e pobre. Ele também. Fiz quase tudo na infância e adolescência para sobreviver – fui engraxate, gari, garçom, bóia fria, garimpeiro, digitador... O escritor colombiano também teve muitas profissões para ajudar a família ou para comprar gibis, jornais, livros e revistas.

Mas gostaria de falar de apenas dois aspectos, da minha vida e da dele, que acredito terem muita semelhança: a vergonha dos piolhos e o amor às mulheres.

Na zona rural do município de Ceres, onde nasci, no interior de Goiás, não tinha muito que fazer, a não ser o trabalho duro na roça. Ali, esperava-se a morte com ansiedade. Não a própria morte, mas a de algum vizinho, cujo velório reunia uma multidão saída sabe-se lá de onde. Como não tinham com quem deixar os filhos, meus pais levavam uma fileira de meninos e meninas pelo beco estreito feito pelo gado no meio do pasto.

Um dia, num desses velórios, meu pai me contou que quando uma pessoa morre os piolhos descem para o rosto do defunto à procura de sangue, que para de circular, ficando com a consistência de uma goiabada. E que quem pega piolho de defunto nunca mais se livra da praga. Assustado, pedi à minha mãe que, quando eu morresse, catasse de mim todos os piolhos, ou rapasse minha cabeça para que meus amigos não vissem meu rosto infestado dos insetos achatados.


“Até os cinco anos, a morte havia sido, para mim, um fim natural que acontece aos outros (...). Até que meio de esguelha reparei, num velório, que os piolhos estavam escapando dos cabelos do morto e caminhavam sem rumo pelo travesseiro. O que me inquietou desde então não foi o medo da morte e sim a vergonha de que também de mim escapassem os piolhos diante dos que estivessem enlutados em meu velório”, escreveu o Nobel de literatura.

Já a convivência com as mulheres – ao contrário dos piolhos – é um privilégio que Garcia Márquez e eu sempre tivemos. “Acho que, na verdade, eu devo a essência da minha maneira de ser às mulheres da família e às muitas das empregadas que pastorearam a minha infância. Eram de um gênio forte e coração terno, e me tratavam com a mesma naturalidade do paraíso terrenal”. Como ele, eu tenho mais irmãs que irmãos, mais primas que primos, mais amigas que amigos... Talvez por isso, sempre me senti melhor entre elas do que entre os homens.

P.S.

Vem também da minha infância o medo que tenho de dor de dente. Surgiu num velório, quando perguntei:
- Pai, por que essa velha (a morta) tá com esse pano amarrado do queixo pra cabeça?
- Ela morreu de dor de dente...

4 comentários:

  1. Texto maravilhoso. Achei o máximo as duas semelhanças entre vc e Gabriel Garcia Márquez. "Vergonha dos piolhos e o amor às mulheres". Bem faz vc em amar e respeitar as mulheres. Sentimento nobre. Vergonha de piolhos quem não tem? Eu odiava!

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    1. Valeu, companheira. Obrigado pelas palavra de incentivo, Aurielly!!

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