Minha
infância e adolescência foram de trabalho duro. Meu pai se levantava ao
primeiro galo e nos chamava. Eu e meus dois irmãos. “Vamos, meninos, alguém
precisa fazer o trabalho sujo”. Éramos garis.
Mas
a palavra ‘gari’ ainda não existia. O eufemismo surgiu bem depois, pelo menos
para os moradores da pequena Nova Glória, interior de Goiás. Por isso éramos ‘lixeiros’.
Apenas
meu pai recebia – um salário mínimo – pela limpeza da cidade. O lixo era
transportado numa carroça que tínhamos, do tempo em que ainda vivíamos na fazenda,
de onde meus pais se mudaram para que pudéssemos estudar.
Toneladas de lixo eram transportadas por nossa égua russinha... Éramos apenas ajudantes - peças do mecanismo de exploração na engrenagem do poder público municipal, numa sociedade dita avançada que escondia (e esconde) formas contemporâneas de escravidão.
Toneladas de lixo eram transportadas por nossa égua russinha... Éramos apenas ajudantes - peças do mecanismo de exploração na engrenagem do poder público municipal, numa sociedade dita avançada que escondia (e esconde) formas contemporâneas de escravidão.
Isso
foi no início da década de 1980. Eu tinha então sete anos (um irmão de nove e
outro de cinco), mas já desconfiávamos de algo que só viria a ser cientificamente
demonstrado no Brasil em 2004: os garis são invisíveis.
A “descoberta”
foi feita pelo psicólogo e professor Fernando Braga da Costa, que varreu rua por
quase dois anos ao lado dos responsáveis pela limpeza da Cidade
Universitária, em São Paulo.
A
pesquisa participante resultou no ótimo livro Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. “O ofício de
gari parece acentuadamente atravessado por um fenômeno de gênese e expressão
intersubjetivas: a invisibilidade pública – espécie de desaparecimento
psicossocial de um homem no meio de outros homens”, escreveu o pesquisador.
De
fato, só sentimos falta dos garis quando eles entram em greve e lixo mal
cheiroso que produzimos se acumula em nossas calçadas. Como os mendigos, os garis nos fazem
lembrar a nossa própria miséria. Por isso os repelimos, e eles desaparecem.
Assim,
perdemos a oportunidade de aprender com eles, como aprendeu Fernando Braga. “Os
garis abriram meus olhos. Alguma consciência emergiu. Passei a ver coisas que
não via. Passei a ouvir coisas que não ouvia. Passei a sofrer por coisas pelas
quais não sofria (...)”.
Sofrimento
e humilhação. Estas são as únicas coisas das quais me lembro dos três anos em
que trabalhei como gari, apesar de não me envergonhar do que fiz, porque meu pai
também fazia, e me orgulho dele...
Numa
manhã de sábado, na Avenida Paulista, centro de Nova Glória, em frente a uma máquina de beneficiar arroz,
meu pai apanhou o lixo que íamos juntando, alguns metros à
frente. Um rapaz alto, branco e antipático jogou lixo na rua pouco depois que meu velho passou limpando.
- O que você acha que nós somos? – Perguntou papai, fazendo um círculo com o indicador.
- Nada.
São lixeiros...
- O que você acha que nós somos? – Perguntou papai, fazendo um círculo com o indicador.
Sensacional esse texto! Nos faz refletir sobre o nosso comportamento diante destas pessoas que são trabalhadores e humanos como nós. Infelizmente nós deixamos passar como se fossem invisíveis( e não são apenas os garis, quantos outros profissionais também passam "batido") e não reconhecemos a importância do trabalho destas pessoas, que por sinal deveriam ser mais valorizadas, para a sociedade.
ResponderExcluirObrigado, Maria Antônia. A ideia desse blog é justamente suscitar esse tipo de discussão. Os garçons também costumam ser invisíveis... Qual o nome do garçom que me atende, no barzinho preferido?...
ResponderExcluirTexto maravilhoso Rubens.... Trouxe a reflexão do egoísmo do ser humano...
ResponderExcluirObrigado, Camila. Suas palavras me motivam...
ExcluirTesto duro + emocionante , de uma realidade muito próxima , pois trabalho na limpeza de um espaço publico , parabéns tens aqui do outro lado do oceano uma prima orgulhosa de ti .
ResponderExcluirObrigado, a vida é dura, mas vale muito a pena ser vivida. Saudades!!!
Excluir