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domingo, 16 de novembro de 2014

Muito doido

Minha infância foi cercada de loucos. Gente “abilolada” das ideias, desmiliolada: andarilhos, beberrões, mendigos, cachaceiros... Felizmente, eram todos pacíficos, diferentes dos que enlouquecem pelo uso de crack e outras porcarias atuais.


Seus nomes – cuja origem e significados nunca apurei – diziam muito de suas personalidades. O Derreta pedia a todo mundo dinheiro para beber cachaça; até aos crentes, que passavam por ele com suas bíblias debaixo do braço. Mas neste caso nunca confessava como seria aplicado o vil metal, e para convencer o freguês ainda citava o Provérbio:

- O que vê com bons olhos será abençoado, porque dá do seu pão ao pobre.


Depois de investir o dinheiro da mendicância, jogado nas calçadas, conversava sozinho e fazia gestos obscenos para as mocinhas que passavam. Sua memória, porém, era prodigiosa: mesmo no auge da bebedeira dava conta da vida de todo mundo da cidade.


Um dia minha tia Dedé – que diziam ser meio assanhada para os padrões da época e do lugar – perguntou-lhe:


- Você não tem vergonha de viver pedindo?


- Uns pedem, outros dão – retrucou o doido.


Outro zureta que permanecerá vivo para sempre em minha memória é o Café Paterrão. Magro, alto, barbudo e com grandes olheiras, ele era obcecado por café. Diziam inclusive que enlouquecera pelo excesso dessa bebida, que literalmente lhe tirava o sono.


Um dia bateu à nossa porta e pediu-nos, além do café, um cigarro. Não estando nossos pais, enrolamos um papel (sem fumo) e lhe demos. Ao acendê-lo, o fogo chamuscou sua barba. Praguejou as gerações passadas e futuras dos Gonçalves.


- Moleques, seus filhos do cão, vão tocar fogo na p. que os pariu. Vou contar tudo pro pai de vocês.


Já o Gringo não amaldiçoava ninguém. Tinha esse apelido porque vivera em Londres, antes de endoidecer. Diziam que ficou amalucado porque sua mulher o traíra, em plena cama do casal, enquanto ele dava aulas de inglês numa cidade vizinha.


Desde então entregou-se à bebida. E quando se embriagava formava-se um círculo de curiosos em torno dele para ouvi-lo falar um idioma fictício, produzido pelo álcool, que acreditávamos ser o autêntico inglês britânico.


Nem um doido, porém, me impressionou tanto como a Bina – uma mulher franzina, sem dentes e descabelada, com um saco nas costas – que permanece viva em meus pesadelos, mais de 30 anos depois.


Diferente dos outros malucos – andarilhos – ela tinha uma casa, que dividia com uma quantidade inconcebível de cachorros, ou melhor, de ferras que avançavam nos incautos que chegassem perto demais de sua dona.


Para alimentá-los, a tresloucada pedia ossos nos açougues; levados para sua casa-canil, eram roídos dia após dia pelos cães, exalando odor de morte e aparência de labirinto de minotauro.


Um dia, curioso e com medo, perguntei ao meu pai sobre os ossos mal cheirosos:


- Pai, que ossos são aqueles, na casa da Bina?


- São de crianças desobedientes, que ela carrega no saco, mata e dá aos cachorros – respondeu.


Ainda hoje sou um filho obediente.


2 comentários:

  1. Belo conto/crônica, Rubens. Gostei muito, obrigado por ter me convidado a vir aqui. abraços.

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  2. Eu que agradeço seu comentário, J.J.Leandro. As críticas, sobretudo de quem escreve, como você, são muito importantes pra mim!!!

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